LER OUVINDO: The Blues Collection
Enfim voltamos a programação normal... Segue, nesta postagem, um trabalho que fiz para a disciplina 'História dos Estados Unidos', na Universidade de São Paulo, cujo docente foi o Prof. Dr. Sean Purdy.
Resolvi publicar aqui, pois o tema é , além de muito interessante e legal, um prazer! Foi um dos trabalhos que mais gostei de fazer e que mais triste me deixou com seu fim. Acho que tem MUITO mais a ser pesquisado e escrito.
Nele tive de deixar de lado o olhar geográfico e focar em outro tipo de análise. Ele foi feito em um curto período de tempo, mas ficou um semestre todo cozinhando.
Provavelmente quem se dedicar a ler vai achar uma série de erros e inconsistências. Se não encontrarem eu dormirei bem, caso encontrem me avisem!
Agradeço a todos e todas que dispensarem um minutinho de suas vidas medíocres para ler!
Meu cordial desprezo, só que não!
Quem quiser faze ro download do arquivo: https://www.box.com/s/38fec24381a59b8a1516
O BLUES DE R. CRUMB
Introdução
Este trabalho pretende
verificar como se desenvolve a história do blues
tendo como base a HQ[1] Blues de Robert Crumb. Vê-se, em larga escala,
uma abordagem do momento histórico e da trajetória do blues sempre associada ao jazz,
porém sabemos que a história do primeiro antecede a do segundo. Então onde é
que o blues se perdeu do jazz? O que a trajetória do blues nos conta sobre a situação social
do imigrante africano nos Estados Unidos?
Toda essa problemática e
questionamentos, estão, supostamente, colocados na narrativa de Robert Crumb. Nela
o autor descreve e ilustra toda sua pesquisa sobre o ritmo e seus músicos.
Trata-se de um trabalho informal, pois não é acadêmico, porém é o registro de
uma pesquisa a qual o autor se dedicou por cerca de duas décadas.
Figura 1 - Capa do livro de Robert Crumb.
[1] História
em quadrinhos
A história do jazz é amplamente divulgada em textos
acadêmicos, tanto que a HQ de Crumb ganha destaque por ter um acervo de
histórias e fatos em torno única e exclusivamente do gênero blues. Outro ponto bastante importante é
que mesmo tendo dado origem ao jazz,
hoje bastante refinado e elitizado, acaba ficando ainda no gueto em alguns
nichos como o da própria academia. Sua história está vinculada à formação dos
guetos nos Estados Unidos, e suas letras registram o sentimento de toda uma época,
na própria simplicidade das blues notes[1]
está a condição social dos que construíram esse ritmo.
A origem do blues não pode ser datada com precisão,
porém Gérard Herzhaft, eu seu livro Blues de 1989, nos dá a luz do primeiro
registro do uso do termo:
É no diário de
Charlotte Forten[2] que aparece pela primeira vez o termo
“blues”. Charlotte era uma negra nascida livre no Norte, que tinha estudado e
se tornado professora. Depois de alguns anos de ensino no estado de Maryland,
decidiu, a pedido do proprietário, ensinar a ler os escravos de Edito Island,
na Carolina do Sul e ai morou de 1862 a 1865. Ela manteve um relatório quase
que diário desses anos, notando sobretudo as dificuldades de toda ordem que
encontrava em suas obrigações. No domingo de 14 de dezembro de 1862 escreveu,
transformada pelos gritos que subiam dos bairros de escravos:
“Voltei da
igreja com o blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que
cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável”.
Ela não define
as relações eventuais do blues com qualquer expressão musical mas nota,
todavia, alguns dias mais tarde (18 de fevereiro de 1963), falando da canção Poor Rosy:
“Uma das
escravas me disse: ‘Gosto de Poor Rosy
mais do que de qualquer outra canção, mas para cantá-la bem é preciso estar
muito triste e com o espírito inquieto’”.[3]
Assim surge seu nome, das colocações populares sobre o sentimento
que transmitia aquela música. Herzhaft ainda afirma que a música descrita por Charlotte, Poor Rosy, não é o mesmo blues que se constitui depois de 1920,
é, segundo o autor, “uma espécie de balada bem ritmada”. Então o sentimento blues e os sujeitos envolvidos com a
música na época, estavam galgando o que viria a se tornar um movimento musical
e o registro da sentimentalidade de toda uma época. Ainda em “História dos
Estados Unidos” vemos:
“Apesar das adversidades, os negros do Sul não foram somente vítimas. A esperança dada pela liberdade acordada após a Guerra Civil persistiu. Muitos criaram famílias estáveis, lutaram para sobreviver e construíram espaços sociais e culturais autônomos, inclusive linguagens musicais populares dinâmicas e criativas como jazz e o blues”. [4]
Dando continuidade ao relato
do surgimento do ritmo, Herzhaft continua:
Se o termo
“blues” em seu sentido atual parece ter sido de uso corrente em meados do
século XIX, a origem desse nome é incerta. Não temos conhecimento da existência
de nenhuma explicação escrita quanto ao nascimento desse termo antes de 1960 e
as primeiras pesquisas científicas sobre esse gênero musical. Mesmo um
folclorista tão advertido como Alan Lomax, que gravou centenas de canções e
entrevistas com músicos negros para a Biblioteca do Congresso nos anos 30 e 40,
empregava o termo “blues” como uma palavra da linguagem corrente, sem jamais
aprofundar seu sentido etimológico.[5]
Então temos ai o uso
do termo e a problemática da falta do desenvolvimento de seu
significado, porém se considerarmos diversos relatos que apontam a origem do
ritmo ligada aos cantos spiritual[6],
cantadas pelos negros africanos e ligadas às worksongs dos campos estadunidenses, podemos traçar um período de
origem e desenvolvimento do ritmo. Ainda é importante considerar o longo
período desde a chegada dos negros escravos ao território Norte Americano:
“O primeiro
navio holandês com escravos negros chegou à Virgínia em 1619. Em 1624, em
Jamestown, o primeiro menino negro nascia em solo americano. Era Willian
Tucker, filho de africanos e, oficialmente, o primeiro afro-americano. (...)
Entre 1619 a 1860, cerca de 400 mil negros foram levados da África para os
Estados Unidos. Ao fim da época colonial, havia cerca de meio milhão de
escravos nas colônias inglesas da América do Norte”.[7]
Neste trabalho iremos considerar o período dos grandes nomes do blues em
seus diversos segmentos, faz-se necessário dizer que “grandes nomes” não indicam músicos consagrados das
gravadoras e sim os músicos que foram de alguma forma marcante no desenvolvimento
do ritmo, ainda que não tenham sido aclamados pelo público e ainda que nos dias
atuais não tenha difusão de sua música. O contexto analisado é o dos trabalhos
compulsórios no campo, da segregação racial legitimada pelas leis de Estado e
da situação do negro segregado em guetos nos espaços urbanos:
“Cento e vinte
cinco anos depois de sua formação e três décadas depois de uma guerra civil que
dividiu a nação em duas, os Estados Unidos entrariam no século XX como o maior
poder econômico do mundo. (...) Grande parte da elite e seus defensores
intelectuais baseavam-se na doutrina do darwinismo social, segundo o qual o
grande poder político e econômico refletia o sucesso natural dos mais aptos da
sociedade. (...) Segregação formal e informal da população negra e políticas
discriminatórias (...) foram justificadas por meio dessa ideologia”.[8]
A
história social do Blues em Crumb
Blues[9] adentra o clima do velho Mississipi
contando a história da primeira leva do ritmo e do momento em que a indústria
fonográfica americana põe em prática o projeto das Race Records[10].
Figura 2 - Propaganda dos músicos das race records, a principal delas foi a Okeh.
[1]
Uma das características mais marcantes do gênero.
[2] Charlotte Forten, A free negro in the slave era, Nova
Iorque, Mac Millan, 1961.
[4]
PURDY, Sean, “O século americano”,
in: KARNAL, Leandro, História dos Estados
Unidos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg. 184.
[6] Spirituals são canções folk religiosas cantadas pelos negros do
Sul.
[7]
KARNAL, Leandro, História dos Estados
Unidos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg. 63.
[8]
PURDY, Sean, “O século americano”,
in: KARNAL, Leandro, História dos Estados
Unidos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg. 175.
[9]
Blues, com letra maiúscula, fará neste trabalho referência a obra de R. Crumb,
sendo blues, com letra minúscula fará
referência ao ritmo.
[10]
Foram gravadoras que focaram suas gravações e vendas para o público negro do
sul, segundo Herzraft, a indústria vendia o fonógrafo e como brinde presenteava
com dois discos de blues, gravados
pelas race records.
O
cartunista foi pessoalmente buscar pelos bairros negros estadunidenses relatos
e discos raros, como ele mesmo apresenta:
Figura 3 - quadro da
página 53 de Blues
Crumb sai em busca de
histórias e discos das décadas de 20 e 30, “foi dessa maneira que descobri o blues primitivo, que era então
totalmente desconhecido, e jamais tocado em rádios ou em qualquer lugar. A
antiga música rural, o blues negro e
a antiga música country branca eram
totalmente desconhecidos, esquecidos”. Com isso passou cerca de duas décadas
fazendo levantamentos e trabalhando nas histórias que viriam compor o
quadrinho. A primeira história é a de Charley Patton, um dos principais
musicistas do Mississipi:
Sempre me
interessei pela música dos anos 1920. Quando criança, eu a escutava nos filmes
antigos e sempre gostava, não sei bem por quê. Passei a pesquisa-la. Durante
minha pré-adolescencia, sempre que tinha dinheiro, tentava encontrar discos de
música daquela época. Porém eles não existiam. Comprei um disco de jazz dixieland dos anos 50 que foi bem
decepcionante, porque nem de longe se tratava da mesma coisa.[1]
Com este espírito, Robert
Crumb constrói sua narrativa, fazendo a crítica necessária à tendência que a sociedade capitalista tem
de apagar seu passado em nome da monetização, obscurecendo sua própria história
e origem.
Hobsbawn em seu livro “A história social do Jazz” dedica um
capítulo ao blues; “Blues e jazz
orquestral”, são 25 páginas dedicadas a diferenciar o blues do jazz. Sabe-se da
intencionalidade do autor ao
colocar o jazz como “compositor” e “narrador” da história social do povo
negro na América do norte, porém há que se questionar sua efetividade, se
pensarmos que o jazz é posto como
condutor de uma história que tem início muito antes de sua própria origem.
Na introdução deste trabalho
pontuamos a possível origem do blues,
sua composição de notas e ritmo simples tem ligação com sua própria origem, esta é uma evidência de
sua ligação com as músicas feitas pelos negros escravos; simples, pois não
tinham nada além de voz e instrumentos improvisados. Mas mesmo Hobsbawn reconhece a origem do blues
independente do jazz:
Mas mesmo Hobsbawn reconhece
a origem do blues independente do jazz:
O blues não é um estilo ou uma fase do jazz, mas um substrato permanente de
todos os estilos; não o é todo o jazz,
mas é o seu núcleo. (...) o momento em que o blues deixar de fazer parte do jazz,
como o conhecemos, deixará de existir. (...) O grande e revolucionário Charlie
Parker observou, no último dia de sua vida conturbada, que “é uma pena ver que
muitos dos jovens músicos que estão começando a aparecer não conhecem ou se
esqueceram dos fundamentos: o blues”.
“É a base do jazz” Disse ele.[2]
O autor reconhece que o blues, de certa maneira, cai no
esquecimento; e até mesmo na
historiografia tem pouquíssimo destaque. Vê se um número grande de
publicações sobre o jazz, que não
serão citadas aqui, pois uma breve busca em catálogos de livrarias e bibliotecas
prova a afirmação. Porém Crumb com sua obra distante da academia, volta a
recompor a historicidade que acompanha o ritmo. Claro que não deve se comparar
o trabalho de Crumb com a competência de um pesquisador da área, munido de uma
boa bagagem teórica, porém a que se reconhecer a importância de seu relato.
Existem ainda tantos outros
autores que relevam, com muito mais importância, a história que acompanha o blues, como Miller. O autor afirma que o
blues é “um folclore bastante vivo
que permite aos afro-americanos comunicarem uns aos outros as experiências
relativas às suas condições de vida, preservando em cada um a capacidade de
lutar contra elas”[3].
Diante desta colocação, há que ser ressaltado a importância que o jazz tem hoje enquanto movimento de
resistência, é de fato? Ou então também é mais um produto comercializado que
matou uma de suas raízes?
E como tantos autores da
academia, Crumb perpassa por todos os fatos importantes que influenciaram o
surgimento do ritmo em questão. Sua obra tem início com a história de Charley
Patton. Este que, no livro de Herzraft entra no primeiro grupo de bluesman do Delta do Mississipi.
Herzraft define o estilo:
O blues que se desenvolveu nesse lugar
retém também uma forte predominância da influência africana: pouca melodia mas
um ritmo sincopado e lancinante riffs repetitivos, um canto veementemente e
tenso, frequentemente recitativo, com efeitos frequentes de falsete.[4]
Com a história de Patton,
Crumb contextualiza alguns importantes momentos, como por exemplo, a situação
econômica e social do “povo negro pobre e isolado que morava e trabalhava
nessas plantações, o modo de vida não era muito diferente daquele tempo da escravidão”. Ainda conta do
contato de Patton com Henry Sloan, que foi considerado o primeiro bluesman, descoberto numa estação de
trem pelo pianista W.C. Handy, no Mississipi, em 1903.[5]
Ainda há outro diálogo entre
Herzhaft e Crumb, na página 11 de Blues, Crumb fala do “novo blues comercial”
este que “era cantado nos teatros e cabarés por mulheres negras refinadas e
apoiadas pelas bandas de jazz que
começavam a emergir no showbizz”.[6]
Figura 4 - Página 11
de Blues
[1]
CRUMB, Robert. Blues. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 97.
[2]
HOBSBAWN, Eric J., História Social do
Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Pg. 105.
[3] MILLER, Manfred. O Blues. In BERENDT, Joachin-Ernest. História do Jazz. São Paulo, SP: Abril
S/A Cultural e Industrial, 1975. Pg. 146.
[4] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg.
38.
Com esta pequena esquete,
Crumb define o que viria a ser o início do processo de comercialização do blues. Segundo Herzhaft, esse processo
começa já no meio urbano, mais especificamente em alguns cabarés do Harlem, onde uma “pequena burguesia
local” assistia a um blues enquanto
“nostalgia do Sul – tocado ou cantado em um contexto de jazz – afirmação de sua urbanidade”. [1]
Crumb não desenvolve neste
momento de sua obra a comercialização, mas já sugere que ao mesmo tempo em que, na cidade, acontece o processo de apropriação do ritmo por outra classe, continuam surgindo novos nomes do blues no campo, ou mais
especificamente no Sul dos Estados Unidos. Ou como afirma Miller, “na
hierarquia social das formas de expressão musical, o blues, ocupa a posição inferior, sendo música ‘bruta’ da camada
social mais baixa – o proletariado negro e o subproletariado” [2].
Dentro da narrativa que
conta a história de Patton, ainda aparecem Willie Brown, Tommy Johnson e Robert
Jhonson. Essa esquete[3] termina com a morte de Patton
e a fonte dos fatos expostos por Crumb; “Grande parte da informação colhida
para essa história foi retirada do bom livro de Robert Palmas, Deep blues, publicado em 1981 pela
Viking Press”.[4]
Dando continuidade ao trabalho, Crumb inicia
uma série de esquetes sobre as letras de blues e algumas histórias que expõem
sua visão daquele momento histórico, segue o clip ilustrado de “On The Sunny Side Of The Street” e uma
esquete chamada “Aqueles malditos blues”, de 1973, a última trata-se de um
diálogo entre dois homens negros, aparecem, supostamente, críticas escondidas
na narrativa, com relação aos homens machistas dos movimentos ativistas negros
da época, porém isto é apenas uma interpretação possível, visto que Crumb, pode
também ser lido como um reprodutor de ideias machistas.
Depois tem início “As velhas
canções são as melhores”, onde Crumb expõe uma série de ilustrações de músicas,
mostrando como as vê. A primeira é “On
the street where you live”, em nota de roda pé ele mesmo afirma: “Eu não
considero coisas desse tipo como ‘velhas’ canções...”. Segue então “My guy” um musical da década de 1960, “Purple Haze” que ele classifica como “um
sucesso popular da era hippie” e na página seguinte se refere da seguinte
maneira: “É, os bons e velhos anos 1960 – mas, cá entre nós, aquela música
psicodélica era bem boba e acabava entediando”. Então ilustra “When you go a courtin”, “retirada de um
velho disco de folk dos anos 1920”.
Por fim apresenta “Sunny side up”
através de uma das suas personagens, Mr. Natural.
Segue uma série de
ilustrações de capas de discos e cartazes que remontam a era do blues.
Figura 5 - Cartazes e discos ilustrados por Crumb, presentes
em Blues.
[1] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 32.
[2] MILLER, Manfred. O Blues. In BERENDT, Joachin-Ernest. História do Jazz. São Paulo, SP:
Abril S/A Cultural e Industrial, 1975. Pg. 45.
[3] Aqui,
e durante todo o corpo do trabalho, chamo de esquete as pequenas peças
narrativas produzidas por Crumb, fugindo do sentido estrito da palavra que vem
de sketch, que designa desenhos
feitos sem arte finalização.
[4]
CRUMB, Robert. Blues. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004.
Na página 49 segue a esquete
“É a vida”, nesta narrativa Crumb conta um pouco mais sobre sua expedição atrás
dos discos de blues e narra uma das
histórias que ouviu, ou criou para mostrar mais aspectos do blues. Nesta história aparece um homem
negro, Tommy, que mora no campo, ao ter uma briga com sua mulher parte estrada
a fora. Sentado no pé de uma árvore encontra dois conhecidos que estão em um
carro, os dois dizem que estão indo pra uma cidade, na seguinte fala sabemos o
motivo:
“- A gente vai
aparece num disco, Tommy... Sabe o velho Hartley da loja de música de Jackson?
Ele conseguiu pra gente esse trabalho de tocá blues pra uma dessas empresas
grande de disco!!
Tommy: -
Quanto cês vão pagá pra essas pessoa gravá o disco?
- Não, Tommy,
rapaz... As pessoas pagam procê! O velho Hartley falô que o homem dá 25 dólares
pra cada música que cê bota no disco...
(...)
Pode crê que é
bom... E depois, se ocê faz sucesso, eles te chamam de volta e fazem mais uma
panelada de disco, e cê recebe pagamentos maiores... 50 dólares por gravação ou
até mesmo 100!!”.[1]
Com essa história Crumb
exibe o papel das gravadoras e das chamadas race
records, bem como expõe as ilusões destes homens que migravam para o Norte
numa tentativa de ficarem famosos como alguns outros bluesman ficaram. Herzhaft fala em seu livro sobre a criação das
chamadas race records, e da tentativa
de formar um grupo de consumidores desse ritmo que despontava cada vez mais
forte no Sul dos Estados Unidos.
“O diretor de
orquestra negro Perry Bradford, certo de encontrar um importante público local
para discos desse gênero, conseguiu vencer as reticencias (gravar com um
artista negro) do produtor de discos Okeh Fred Hager, e uma cantora local
popular, Mamie Smith, entrava nos estúdios nova-iorquinos, em 1920, pra
gravar”. [2]
Com o sucesso de Mamie
Smith, as gravadoras perceberam a importância do gênero como uma oportunidade
de negócio, dai a criação dessas gravadoras de raça. De 1922 em diante, segundo
Herzhaft, a grande maioria das gravadoras tinham suas race series.
Neste momento o blues se fundiu comercialmente ao jazz, pois as gravadoras mesclavam os
dois ritmos, num outro nicho de comércio musical, para esta fusão, as classic blues singers eram chamadas de
suas atividades já consolidadas nas chamadas turnês de vaudeville, que “eram comédias musicais, espetáculos ambulantes do
começo do século”[3].
Essas cantoras adquiriram experiência de palco nestes espetáculos, e daí
podemos dizer que começa uma profissionalização do blues.
Essas cantoras viveram sua
infância no meio rural, educadas ouvindo o blues
que ali era feito, mas tendo vivido experiências nos music-hall, tinham um diferencial dos bluesman da época, elas tinham uma dicção clara e usavam efeitos vocais
mais sofisticados, tinha também uma orquestra de apoio, esta que já utilizava
os metais, a maioria delas acabava fazendo carreira também nos teatros e no
cinema mudo.
Segue a esquete “A maldição
vodu de Jelly Roll Morton”, esta narrativa conta a história de um homem da
indústria musical que chegou a bancarrota através de uma magia vodu que
lançaram nele. Essa esquete retoma o folclore que se constitui em torno de
algumas lendas do blues, como por exemplo, Tommy Johnson, que dizia ter vendido
sua alma ao diabo para conseguir alcançar a fama.
Outro ponto importante a se
comparar com Blues, é que na página
18, Crumb conta a história de Tommy e seu pacto com o diabo, mais a frente, na
página 19, conta a historia de Robert Johnson e a nova safra de bluesman. Aqui encontramos mais um ponto
de confiabilidade dos registros de Crumb, em muitas fontes, a história de
Robert Johnson e confundido com Tommy Johnson[4], em Blues a história é contada
corretamente.
Segue então a última esquete
ligada a história do blues, chama-se “Protesto de Crumb contra a música moderna
– Onde foi parar toda aquela música dos nossos avós?”, nela o autor justifica
seu posicionamento saudosista. Mais uma vez ele descreve o poder da indústria
musical pervertendo o sentido da música ligada a uma cultura de raiz.
No esquete ele espanca um
jovem garoto representante das novas tendências musicais, em meio ao
espancamento um diretor de gravadora diz: “Cuidado com ele (o garoto da banda
nova)! Cuidado! Cuidado! Esta criança vale o peso em ouro! Cristo! Não vá
aleijar ele! Tenho muito capital investido aqui... Cara! Que diabos há de
errado com você??”, Crumb responde ainda na narrativa, “Você está certo, não é
ele quem eu devia assassinar, é você!! Seu maldito!”[5]. Segue um longo discurso
do diretor de gravadora tentando convencer Crumb de que ele conhece bem as
“músicas boas”.
Com isso Crumb percorre a
origem da música até os dias de hoje, mostrando como seu sentido enquanto
expressão cultural foi se perdendo a medida que foi se ligando a um novo nicho
da indústria. Descreve a época das cavernas:
“Naquela época
eles não tinham rádios nem toca-fitas, e precisavam fazer sua própria música.
Então eles simplesmente soltavam o gogó ou batucavam em alguma engenhoca
caseira...Mas, caramba, mesmo assim eles se divertiam...”[6]
Então ele avança no tempo
descrevendo vários momentos históricos e a intencionalidade da produção
musical. Até que chega nos dias atuais e diz que “os garotos enfiarão sua
magnífica herança cultural no saco de lixo (...)”[7].
Considerações
finais: Pra onde foi o blues?
Ao longo da história, em
diferentes momentos, houve uma apropriação comercial de determinadas
manifestações culturais seja a dança, literatura ou teatro. Ainda sim é
possível ver uma força maior de comercialização da música. Aparentemente, é
muito mais fácil capitalizar os estilos musicais, seja lá por qual motivo, ou
qual força o som se manifesta enquanto identidade, então ha comercialização é
desta também.
Atualmente, uma infinidade
de estilos mesclados, espalhados pelo mundo e globalizados, são uma mistura,
por assim dizer, de tantas tendências, que se perdem ao longo de sua própria
história, desligando-se muitas vezes e sem volta, de sua raiz. Mas há que se
considerar que a busca pelas origens é inerente ao homem, ele sempre buscará
saber sobre o início do que costuma consumir ou gostar, e dessa busca muitos
estilos renascem. Como o próprio samba de raiz no Brasil, que ganha novos
atores, mas atualmente volta reforçando algumas características de seus
originais.
O blues em atualmente está enclausurado em alguns nichos ‘cults’, misturado ao jazz e a outros ritmos que se originaram
do primeiro; está perdido entre tantos outros ritmos. Crumb, com sua crítica
irônica e mordaz, não polpa esforços ao ridicularizar o que ele mesmo chama de
modernidade, e consideraremos o conceito dentro do que ele mesmo define,
enquanto registro de um momento de opressão do povo negro e por isso carreado
de significação.
Eu e Crumb somos brancos,
então por que nos toca tanto?
Sendo este um ritmo que denuncia
a exclusão, a condição sofrida de um povo todo, toca, pois sendo ela originada
num sentimento, causa este mesmo à quem se põe sensível a ouvir. É então uma
transfusão do sentimento de uma época, não é então somente um documento que
lido pode ser interpretado, é ainda o que era na época, está vivo e latente, “o
blues é o lamento dos oprimidos, o
grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada
fatalista. É a agonia da indecisão, o desespero dos desempregados, a angústia
dos desiludidos e o humor seco do cínico” [8].
Muitas vezes Crumb parece
ser um saudosista ranzinza e teimoso, mas ele mesmo se justifica no esquete
“Protesto de Crumb contra a música moderna – Onde foi parar toda aquela música
dos nossos avós?”, dizendo:
“Então você
pergunta: E daí? O que eles deviam fazer, voltar e rezar dentro de cabanas com
chão de terra?? O que há de errado com a música pop moderna? Eles estão se
divertindo, que diabo diferença isso faz? O que te deixa tão revoltado nisso
tudo??? Eu não sei... Acho que fiquei desse jeito por escutar demais discos
velhos... Esses ecos do passado Um mundo perdido, pode apostar...A perda
daquelas tradições musicais antigas e valiosas... Bem, isso corta a porra do
meu coração!”.[9]
E ainda em seu posfácio:
“A música pop
moderna sempre me pareceu apocalíptica. Eu ia aos concertos de grupos de rock.
A música era ensurdecedora e as pessoas dançavam. Sempre achei que isso parecia
o fim do mundo, como se elas dançassem a beira do abismo. Em comparação, a
música antiga tem um ar equilibrado, de uma certa maneira. As danças antigas
faziam parte de uma vida social que tinha uma continuidade, que mostrava coesão
de sociedade. A dança moderna passa a impressão de ser o último passo antes do
mergulho no caos absoluto. A página original de ‘Keep on truckin’...foi uma
sátira implacável ao otimismo forçado que se sente na música moderna”.[10]
A grande questão evidenciada
por Crumb é que hoje a música perde seu sentido de contestação para ser somente
elemento de entretenimento, com isso podemos analisar com foco no blues. Este fato é então a evidência do
que aconteceu com o blues e continua acontecendo com tantos outros ritmos
espalhados pelo mundo. Seu sentido original se perde em suas ramificações e
muitos são abandonados ou banalizados até mesmo em estudos acadêmicos.
Existem ainda muitos livros
e artigos que exploram o universo do blues,
Crumb conseguiu fazer um grande levantamento sem embasamento teórico e
auxílio de metodologias, foram anos apreciando e obtendo informações em loco.
Ainda sim existe uma porção de produções acadêmicas que convergem quanto ao
surgimento e sentido do blues.
Atualmente, ainda temos
outras músicas que se ligam ao ritmo de alguma forma, ele não está morto. Sobrevive
em letras como Hard Times de Baby Huey and the Babysitters da década
de 1970:
“Cold,
cold eyes upon me they stare
People
all around me and they're all in fear
They
don't seem to want me but they won't admit
I
must be some kind of creature up here having fits
(...)
Havin'
hard times, there's no love to be found”.[11]
Vive ainda na história de
Charles Bradley, que morou por anos na rua, tentando ganhar a vida, tendo seu primeira gravação em estúdios em 2003:
“This
world is going up in flames
And nobody wanna take the blame
Don't tell me how to live my life
When you never felt the pain
And nobody wanna take the blame
Don't tell me how to live my life
When you never felt the pain
Come
on babe
They don't hear me cry”.[12]
They don't hear me cry”.[12]
E com isso, como breve
conclusão, faz se necessária uma maior atenção, ao se contar a história do povo
negro estadunidense, e até mesmo a história da própria música, uma maior
atenção ao blues, atenção essa
clamada também por Robert Crumb e Herzhaft, que na passagem “Qual o blues do
futuro?” de seu livro diz:
“Universalmente
aceito e reconhecido em toda parte como uma fonte maior de influência da música
popular contemporânea, ativando novas vocações no mundo inteiro, o blues deixou
de ser verdadeiramente popular entre o povo negro-americano que o criou. (...) blues,
que foi sem dúvida o último gênero musical que se pode verdadeiramente
qualificar de étnico a aparecer no mundo dos homens. (...) Qualquer que seja
seu futuro, o blues jamais voltará a ser o que foi. Podemos imaginar
verdadeiramente, por exemplo, que Muddy Waters teria podido tocar outra coisa
que não o blues?”.[13]
ANEXO
Quem é Robert Crumb?
Robert Crumb nasceu em 30 de
agosto de 1943, na Filadélfia. Seu pai era da Marinha e sua mãe uma mulher
muito católica. Em 1956, depois de muitas mudanças, a faia Crumb estabelece
residência em Delaware. Os pais de Robert não tinham uma boa relação, sua mãe
era viciada em anfetaminas e o pai depressivo, as brigas entre os dois eram
recorrentes. O autor relata no documentário produzido sobre sua vida que sua
mãe “unhava” o rosto de seu pai, e muitas vezes ele tinha de ir maquiado aos
eventos públicos para que não vissem o problema. Crumb e seus quatro irmãos
crescem nesse ambiente instável.
Sua maior influência durante
juventude foi seu irmão mais velho, Charles Crumb, foi este irmão quem
despertou seu interesse pelas histórias em quadrinho. Os dois produziram
diversas histórias e juntos, ainda na infância, formaram um clube de
quadrinistas. Crumb nunca foi o tipo popular e se sentia sempre deslocado dos
grupos com os quais convivia, era um gouche[14],
em essência.
Depois de terminar o
colegial, Robert passou um ano deprimente Charles, os dois dialogavam muito
sobre o sentido da vida, sua produção acompanhava seu estado de espírito. Crumb
viria a levantar-se, mas Charles nunca mais sairia de seu quarto, até a data de
seu suicídio. Crumb deixa Cleveland em 1962 para viver com seu amigo Marty
Pahls, e logo iniciou seu trabalho junto a empresa American Greetings como colorista. Ele foi promovido dentro de um
ano para o departamento de Hi-Brow, e
com isso começou a atrair a atenção de centenas de fãs. Seu trabalho comercial
teria forte impacto em sua futura produção, "Meu chefe sempre me dizia que
meus desenhos eram muito grotescos. Fui treinado para desenhar pequenos
personagens "bonitos" neutros que influenciaram a minha técnica, e
até agora meu trabalho tem essa fofura".
Foi com o contato com a
droga LSD que Crumb despertou de um estado de “personagens ‘bonitos’” para a
psicodelia no sense produzida pelos
efeitos da droga. "Comecei a tomar LSD em Cleveland, em junho de '65. Isso
mudou minha cabeça. Isso me fez parar de tomar cartooning tão a sério e me
mostrou um lado completamente diferente de mim."
Nesta mesma época Robert
viajou por Nova York, Chicago, Detroit e neste período foi seu mais intenso
contato com o LSD quando criou muitos de seus personagens como o Mr. Natural, o
Sr. Snoid e Angelfood McSpade.
Em janeiro de 1967, o autor deixa
Cleveland. "Eu escapei para San Francisco, quando eu conheci dois caras em
um bar que disse que eles estavam dirigindo para o oeste”. Em 1967 Crumb
desenhou "Zap # 1" e "Zap # 0" e em 1968 os vendeu nas ruas.
Este é marco do nascimento de quadrinhos underground com Crumb, sua principal
marca. Atualmente Crumb vive no sul da França, onde produziu seu mais longo
projeto, a ilustração do livro da Gênesis. Sua coleção de LPs de 78 RPM chega a
cinco peças.
[1]
CRUMB, Robert. Blues. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 50.
[2] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 32.
[5]
CRUMB, Robert. Blues. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 62.
[8]
MUGGIATI, Manfred, Blues – da lama a fama.
São Paulo, SP: Editora 35, 1995. Pg. 53.
[9]
CRUMB, Robert. Blues. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 63.
[14] A
palavra Francesa gouche em sua tradução
literal significa esquerda, porém também designa o estranho, o outro, aquele
que não se adequa a padrões sociais.
Ficou muito bom o trabalho, Mari... tanto o conteúdo quanto o texto. Sugiro que tente divulgá-lo ou publicá-lo também em outros blogs ou publicações impressas sobre jazz e blues... é só dar uma mexidinha leve para não ficar com linguagem 100% acadêmica que vai fazer sucesso em qualquer lugar.
ResponderExcluirAbraço!
Muito obrigada Júlio! Vou correr atrás disso mesmo!
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