quinta-feira, julho 12, 2012

O Blues de R. Crumb


LER OUVINDO: The Blues Collection 
Enfim voltamos a programação normal... Segue, nesta postagem, um trabalho que fiz para a disciplina 'História dos Estados Unidos', na Universidade de São Paulo, cujo docente foi o Prof. Dr. Sean Purdy.
Resolvi publicar aqui, pois o tema é , além de muito interessante e legal, um prazer! Foi um dos trabalhos que mais gostei de fazer e que mais triste me deixou com seu fim. Acho que tem MUITO mais a ser pesquisado e escrito.
Nele tive de deixar de lado o olhar geográfico e focar em outro tipo de análise. Ele foi feito em um curto período de tempo, mas ficou um semestre todo cozinhando. 
Provavelmente quem se dedicar a ler vai achar uma série de erros e inconsistências. Se não encontrarem eu dormirei bem, caso encontrem me avisem!
Agradeço a todos e todas que dispensarem um minutinho de suas vidas medíocres para ler!
Meu cordial desprezo, só que não!

Quem quiser faze ro download do arquivo: https://www.box.com/s/38fec24381a59b8a1516

O BLUES DE R. CRUMB

Introdução
Este trabalho pretende verificar como se desenvolve a história do blues tendo como base a HQ[1] Blues de Robert Crumb. Vê-se, em larga escala, uma abordagem do momento histórico e da trajetória do blues sempre associada ao jazz, porém sabemos que a história do primeiro antecede a do segundo. Então onde é que o blues se perdeu do jazz? O que a trajetória do blues nos conta sobre a situação social do imigrante africano nos Estados Unidos?

Toda essa problemática e questionamentos, estão, supostamente, colocados na narrativa de Robert Crumb. Nela o autor descreve e ilustra toda sua pesquisa sobre o ritmo e seus músicos. Trata-se de um trabalho informal, pois não é acadêmico, porém é o registro de uma pesquisa a qual o autor se dedicou por cerca de duas décadas.

Figura 1 - Capa do livro de Robert Crumb.


[1] História em quadrinhos

A história do jazz é amplamente divulgada em textos acadêmicos, tanto que a HQ de Crumb ganha destaque por ter um acervo de histórias e fatos em torno única e exclusivamente do gênero blues. Outro ponto bastante importante é que mesmo tendo dado origem ao jazz, hoje bastante refinado e elitizado, acaba ficando ainda no gueto em alguns nichos como o da própria academia. Sua história está vinculada à formação dos guetos nos Estados Unidos, e suas letras registram o sentimento de toda uma época, na própria simplicidade das blues notes[1] está a condição social dos que construíram esse ritmo.
A origem do blues não pode ser datada com precisão, porém Gérard Herzhaft, eu seu livro Blues de 1989, nos dá a luz do primeiro registro do uso do termo:
É no diário de Charlotte Forten[2] que aparece pela primeira vez o termo “blues”. Charlotte era uma negra nascida livre no Norte, que tinha estudado e se tornado professora. Depois de alguns anos de ensino no estado de Maryland, decidiu, a pedido do proprietário, ensinar a ler os escravos de Edito Island, na Carolina do Sul e ai morou de 1862 a 1865. Ela manteve um relatório quase que diário desses anos, notando sobretudo as dificuldades de toda ordem que encontrava em suas obrigações. No domingo de 14 de dezembro de 1862 escreveu, transformada pelos gritos que subiam dos bairros de escravos:
“Voltei da igreja com o blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável”.
Ela não define as relações eventuais do blues com qualquer expressão musical mas nota, todavia, alguns dias mais tarde (18 de fevereiro de 1963), falando da canção Poor Rosy:
“Uma das escravas me disse: ‘Gosto de Poor Rosy mais do que de qualquer outra canção, mas para cantá-la bem é preciso estar muito triste e com o espírito inquieto’”.[3]


Assim surge seu nome, das colocações populares sobre o sentimento que transmitia aquela música. Herzhaft ainda afirma que a música descrita por Charlotte, Poor Rosy, não é o mesmo blues que se constitui depois de 1920, é, segundo o autor, “uma espécie de balada bem ritmada”. Então o sentimento blues e os sujeitos envolvidos com a música na época, estavam galgando o que viria a se tornar um movimento musical e o registro da sentimentalidade de toda uma época. Ainda em “História dos Estados Unidos” vemos:


“Apesar das adversidades, os negros do Sul não foram somente vítimas. A esperança dada pela liberdade acordada após a Guerra Civil persistiu. Muitos criaram famílias estáveis, lutaram para sobreviver e construíram espaços sociais e culturais autônomos, inclusive linguagens musicais populares dinâmicas e criativas como jazz e o blues”. [4]

Dando continuidade ao relato do surgimento do ritmo, Herzhaft continua:
Se o termo “blues” em seu sentido atual parece ter sido de uso corrente em meados do século XIX, a origem desse nome é incerta. Não temos conhecimento da existência de nenhuma explicação escrita quanto ao nascimento desse termo antes de 1960 e as primeiras pesquisas científicas sobre esse gênero musical. Mesmo um folclorista tão advertido como Alan Lomax, que gravou centenas de canções e entrevistas com músicos negros para a Biblioteca do Congresso nos anos 30 e 40, empregava o termo “blues” como uma palavra da linguagem corrente, sem jamais aprofundar seu sentido etimológico.[5]

Então temos ai o uso do termo e a problemática da falta do desenvolvimento de seu significado, porém se considerarmos diversos relatos que apontam a origem do ritmo ligada aos cantos spiritual[6], cantadas pelos negros africanos e ligadas às worksongs dos campos estadunidenses, podemos traçar um período de origem e desenvolvimento do ritmo. Ainda é importante considerar o longo período desde a chegada dos negros escravos ao território Norte Americano:
“O primeiro navio holandês com escravos negros chegou à Virgínia em 1619. Em 1624, em Jamestown, o primeiro menino negro nascia em solo americano. Era Willian Tucker, filho de africanos e, oficialmente, o primeiro afro-americano. (...) Entre 1619 a 1860, cerca de 400 mil negros foram levados da África para os Estados Unidos. Ao fim da época colonial, havia cerca de meio milhão de escravos nas colônias inglesas da América do Norte”.[7]

Neste trabalho iremos considerar o período dos grandes nomes do blues em seus diversos segmentos, faz-se necessário dizer que “grandes nomes” não indicam músicos consagrados das gravadoras e sim os músicos que foram de alguma forma marcante no desenvolvimento do ritmo, ainda que não tenham sido aclamados pelo público e ainda que nos dias atuais não tenha difusão de sua música. O contexto analisado é o dos trabalhos compulsórios no campo, da segregação racial legitimada pelas leis de Estado e da situação do negro segregado em guetos nos espaços urbanos:
“Cento e vinte cinco anos depois de sua formação e três décadas depois de uma guerra civil que dividiu a nação em duas, os Estados Unidos entrariam no século XX como o maior poder econômico do mundo. (...) Grande parte da elite e seus defensores intelectuais baseavam-se na doutrina do darwinismo social, segundo o qual o grande poder político e econômico refletia o sucesso natural dos mais aptos da sociedade. (...) Segregação formal e informal da população negra e políticas discriminatórias (...) foram justificadas por meio dessa ideologia”.[8]
  
A história social do Blues em Crumb
Blues[9] adentra o clima do velho Mississipi contando a história da primeira leva do ritmo e do momento em que a indústria fonográfica americana põe em prática o projeto das Race Records[10].
 

Figura 2 - Propaganda dos músicos das race records, a principal delas foi a Okeh.


[1] Uma das características mais marcantes do gênero.
[2] Charlotte Forten, A free negro in the slave era, Nova Iorque, Mac Millan, 1961.
[3] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 15
[4] PURDY, Sean, “O século americano, in: KARNAL, Leandro, História dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg. 184.
[5] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 15
[6] Spirituals são canções folk religiosas cantadas pelos negros do Sul.
[7] KARNAL, Leandro, História dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg. 63.
[8] PURDY, Sean, “O século americano, in: KARNAL, Leandro, História dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2010. Pg. 175.
[9] Blues, com letra maiúscula, fará neste trabalho referência a obra de R. Crumb, sendo blues, com letra minúscula fará referência ao ritmo.
[10] Foram gravadoras que focaram suas gravações e vendas para o público negro do sul, segundo Herzraft, a indústria vendia o fonógrafo e como brinde presenteava com dois discos de blues, gravados pelas race records.

O cartunista foi pessoalmente buscar pelos bairros negros estadunidenses relatos e discos raros, como ele mesmo apresenta:
Figura 3 - quadro da página 53 de Blues
Crumb sai em busca de histórias e discos das décadas de 20 e 30, “foi dessa maneira que descobri o blues primitivo, que era então totalmente desconhecido, e jamais tocado em rádios ou em qualquer lugar. A antiga música rural, o blues negro e a antiga música country branca eram totalmente desconhecidos, esquecidos”. Com isso passou cerca de duas décadas fazendo levantamentos e trabalhando nas histórias que viriam compor o quadrinho. A primeira história é a de Charley Patton, um dos principais musicistas do Mississipi:
Sempre me interessei pela música dos anos 1920. Quando criança, eu a escutava nos filmes antigos e sempre gostava, não sei bem por quê. Passei a pesquisa-la. Durante minha pré-adolescencia, sempre que tinha dinheiro, tentava encontrar discos de música daquela época. Porém eles não existiam. Comprei um disco de jazz dixieland dos anos 50 que foi bem decepcionante, porque nem de longe se tratava da mesma coisa.[1]


Com este espírito, Robert Crumb constrói sua narrativa, fazendo a crítica necessária à tendência que a sociedade capitalista tem de apagar seu passado em nome da monetização, obscurecendo sua própria história e origem.

Hobsbawn em seu livro “A história social do Jazz” dedica um capítulo ao blues; “Blues e jazz orquestral”, são 25 páginas dedicadas a diferenciar o blues do jazz. Sabe-se da intencionalidade do autor ao colocar o jazz como “compositor” e “narrador” da história social do povo negro na América do norte, porém há que se questionar sua efetividade, se pensarmos que o jazz é posto como condutor de uma história que tem início muito antes de sua própria origem.

Na introdução deste trabalho pontuamos a possível origem do blues, sua composição de notas e ritmo simples tem ligação com sua própria origem, esta é uma evidência de sua ligação com as músicas feitas pelos negros escravos; simples, pois não tinham nada além de voz e instrumentos improvisados. Mas mesmo Hobsbawn reconhece a origem do blues independente do jazz:
Mas mesmo Hobsbawn reconhece a origem do blues independente do jazz:
O blues não é um estilo ou uma fase do jazz, mas um substrato permanente de todos os estilos; não o é todo o jazz, mas é o seu núcleo. (...) o momento em que o blues deixar de fazer parte do jazz, como o conhecemos, deixará de existir. (...) O grande e revolucionário Charlie Parker observou, no último dia de sua vida conturbada, que “é uma pena ver que muitos dos jovens músicos que estão começando a aparecer não conhecem ou se esqueceram dos fundamentos: o blues”. “É a base do jazz” Disse ele.[2]


O autor reconhece que o blues, de certa maneira, cai no esquecimento; e até mesmo na historiografia tem pouquíssimo destaque. Vê se um número grande de publicações sobre o jazz, que não serão citadas aqui, pois uma breve busca em catálogos de livrarias e bibliotecas prova a afirmação. Porém Crumb com sua obra distante da academia, volta a recompor a historicidade que acompanha o ritmo. Claro que não deve se comparar o trabalho de Crumb com a competência de um pesquisador da área, munido de uma boa bagagem teórica, porém a que se reconhecer a importância de seu relato.
Existem ainda tantos outros autores que relevam, com muito mais importância, a história que acompanha o blues, como Miller. O autor afirma que o blues é “um folclore bastante vivo que permite aos afro-americanos comunicarem uns aos outros as experiências relativas às suas condições de vida, preservando em cada um a capacidade de lutar contra elas”[3]. Diante desta colocação, há que ser ressaltado a importância que o jazz tem hoje enquanto movimento de resistência, é de fato? Ou então também é mais um produto comercializado que matou uma de suas raízes?
E como tantos autores da academia, Crumb perpassa por todos os fatos importantes que influenciaram o surgimento do ritmo em questão. Sua obra tem início com a história de Charley Patton. Este que, no livro de Herzraft entra no primeiro grupo de bluesman do Delta do Mississipi. Herzraft define o estilo:
O blues que se desenvolveu nesse lugar retém também uma forte predominância da influência africana: pouca melodia mas um ritmo sincopado e lancinante riffs repetitivos, um canto veementemente e tenso, frequentemente recitativo, com efeitos frequentes de falsete.[4]

Com a história de Patton, Crumb contextualiza alguns importantes momentos, como por exemplo, a situação econômica e social do “povo negro pobre e isolado que morava e trabalhava nessas plantações, o modo de vida não era muito diferente  daquele tempo da escravidão”. Ainda conta do contato de Patton com Henry Sloan, que foi considerado o primeiro bluesman, descoberto numa estação de trem pelo pianista W.C. Handy, no Mississipi, em 1903.[5]
Ainda há outro diálogo entre Herzhaft e Crumb, na página 11 de Blues, Crumb fala do “novo blues comercial” este que “era cantado nos teatros e cabarés por mulheres negras refinadas e apoiadas pelas bandas de jazz que começavam a emergir no showbizz”.[6]
                                            
Figura 4 - Página 11 de Blues



[1] CRUMB, Robert. Blues. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 97.
[2] HOBSBAWN, Eric J., História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Pg. 105.
[3] MILLER, Manfred. O Blues. In BERENDT, Joachin-Ernest. História do Jazz. São Paulo, SP: Abril S/A Cultural e Industrial, 1975. Pg. 146.
[4] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 38.
[5] CRUMB, Robert. Blues. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 11.
[6] Ibidem.


Com esta pequena esquete, Crumb define o que viria a ser o início do processo de comercialização do blues. Segundo Herzhaft, esse processo começa já no meio urbano, mais especificamente em alguns cabarés do Harlem, onde uma “pequena burguesia local” assistia a um blues enquanto “nostalgia do Sul – tocado ou cantado em um contexto de jazz – afirmação de sua urbanidade”. [1]
Crumb não desenvolve neste momento de sua obra a comercialização, mas já sugere que ao mesmo tempo em que, na cidade, acontece o processo de apropriação do ritmo por outra classe, continuam surgindo novos nomes do blues no campo, ou mais especificamente no Sul dos Estados Unidos. Ou como afirma Miller, “na hierarquia social das formas de expressão musical, o blues, ocupa a posição inferior, sendo música ‘bruta’ da camada social mais baixa – o proletariado negro e o subproletariado” [2].
Dentro da narrativa que conta a história de Patton, ainda aparecem Willie Brown, Tommy Johnson e Robert Jhonson. Essa esquete[3] termina com a morte de Patton e a fonte dos fatos expostos por Crumb; “Grande parte da informação colhida para essa história foi retirada do bom livro de Robert Palmas, Deep blues, publicado em 1981 pela Viking Press”.[4]
 Dando continuidade ao trabalho, Crumb inicia uma série de esquetes sobre as letras de blues e algumas histórias que expõem sua visão daquele momento histórico, segue o clip ilustrado de “On The Sunny Side Of The Street” e uma esquete chamada “Aqueles malditos blues”, de 1973, a última trata-se de um diálogo entre dois homens negros, aparecem, supostamente, críticas escondidas na narrativa, com relação aos homens machistas dos movimentos ativistas negros da época, porém isto é apenas uma interpretação possível, visto que Crumb, pode também ser lido como um reprodutor de ideias machistas.
Depois tem início “As velhas canções são as melhores”, onde Crumb expõe uma série de ilustrações de músicas, mostrando como as vê. A primeira é “On the street where you live”, em nota de roda pé ele mesmo afirma: “Eu não considero coisas desse tipo como ‘velhas’ canções...”. Segue então “My guy” um musical da década de 1960, “Purple Haze” que ele classifica como “um sucesso popular da era hippie” e na página seguinte se refere da seguinte maneira: “É, os bons e velhos anos 1960 – mas, cá entre nós, aquela música psicodélica era bem boba e acabava entediando”. Então ilustra “When you go a courtin”, “retirada de um velho disco de folk dos anos 1920”. Por fim apresenta “Sunny side up” através de uma das suas personagens, Mr. Natural.
Segue uma série de ilustrações de capas de discos e cartazes que remontam a era do blues.
Figura 5 - Cartazes e discos ilustrados por Crumb, presentes em Blues.



[1] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 32.
[2] MILLER, Manfred. O Blues. In BERENDT, Joachin-Ernest. História do Jazz. São Paulo, SP: Abril S/A Cultural e Industrial, 1975. Pg. 45.
[3] Aqui, e durante todo o corpo do trabalho, chamo de esquete as pequenas peças narrativas produzidas por Crumb, fugindo do sentido estrito da palavra que vem de sketch, que designa desenhos feitos sem arte finalização.
[4] CRUMB, Robert. Blues. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.

Na página 49 segue a esquete “É a vida”, nesta narrativa Crumb conta um pouco mais sobre sua expedição atrás dos discos de blues e narra uma das histórias que ouviu, ou criou para mostrar mais aspectos do blues. Nesta história aparece um homem negro, Tommy, que mora no campo, ao ter uma briga com sua mulher parte estrada a fora. Sentado no pé de uma árvore encontra dois conhecidos que estão em um carro, os dois dizem que estão indo pra uma cidade, na seguinte fala sabemos o motivo:
“- A gente vai aparece num disco, Tommy... Sabe o velho Hartley da loja de música de Jackson? Ele conseguiu pra gente esse trabalho de tocá blues pra uma dessas empresas grande de disco!!
Tommy: - Quanto cês vão pagá pra essas pessoa gravá o disco?
- Não, Tommy, rapaz... As pessoas pagam procê! O velho Hartley falô que o homem dá 25 dólares pra cada música que cê bota no disco...
(...)
Pode crê que é bom... E depois, se ocê faz sucesso, eles te chamam de volta e fazem mais uma panelada de disco, e cê recebe pagamentos maiores... 50 dólares por gravação ou até mesmo 100!!”.[1]

Com essa história Crumb exibe o papel das gravadoras e das chamadas race records, bem como expõe as ilusões destes homens que migravam para o Norte numa tentativa de ficarem famosos como alguns outros bluesman ficaram. Herzhaft fala em seu livro sobre a criação das chamadas race records, e da tentativa de formar um grupo de consumidores desse ritmo que despontava cada vez mais forte no Sul dos Estados Unidos.
“O diretor de orquestra negro Perry Bradford, certo de encontrar um importante público local para discos desse gênero, conseguiu vencer as reticencias (gravar com um artista negro) do produtor de discos Okeh Fred Hager, e uma cantora local popular, Mamie Smith, entrava nos estúdios nova-iorquinos, em 1920, pra gravar”. [2]

Com o sucesso de Mamie Smith, as gravadoras perceberam a importância do gênero como uma oportunidade de negócio, dai a criação dessas gravadoras de raça. De 1922 em diante, segundo Herzhaft, a grande maioria das gravadoras tinham suas race series.
Neste momento o blues se fundiu comercialmente ao jazz, pois as gravadoras mesclavam os dois ritmos, num outro nicho de comércio musical, para esta fusão, as classic blues singers eram chamadas de suas atividades já consolidadas nas chamadas turnês de vaudeville, que “eram comédias musicais, espetáculos ambulantes do começo do século”[3]. Essas cantoras adquiriram experiência de palco nestes espetáculos, e daí podemos dizer que começa uma profissionalização do blues.
Essas cantoras viveram sua infância no meio rural, educadas ouvindo o blues que ali era feito, mas tendo vivido experiências nos music-hall, tinham um diferencial dos bluesman da época, elas tinham uma dicção clara e usavam efeitos vocais mais sofisticados, tinha também uma orquestra de apoio, esta que já utilizava os metais, a maioria delas acabava fazendo carreira também nos teatros e no cinema mudo.
Segue a esquete “A maldição vodu de Jelly Roll Morton”, esta narrativa conta a história de um homem da indústria musical que chegou a bancarrota através de uma magia vodu que lançaram nele. Essa esquete retoma o folclore que se constitui em torno de algumas lendas do blues, como por exemplo, Tommy Johnson, que dizia ter vendido sua alma ao diabo para conseguir alcançar a fama.
Outro ponto importante a se comparar com Blues, é que na página 18, Crumb conta a história de Tommy e seu pacto com o diabo, mais a frente, na página 19, conta a historia de Robert Johnson e a nova safra de bluesman. Aqui encontramos mais um ponto de confiabilidade dos registros de Crumb, em muitas fontes, a história de Robert Johnson e confundido com Tommy Johnson[4], em Blues a história é contada corretamente.
Segue então a última esquete ligada a história do blues, chama-se “Protesto de Crumb contra a música moderna – Onde foi parar toda aquela música dos nossos avós?”, nela o autor justifica seu posicionamento saudosista. Mais uma vez ele descreve o poder da indústria musical pervertendo o sentido da música ligada a uma cultura de raiz.
No esquete ele espanca um jovem garoto representante das novas tendências musicais, em meio ao espancamento um diretor de gravadora diz: “Cuidado com ele (o garoto da banda nova)! Cuidado! Cuidado! Esta criança vale o peso em ouro! Cristo! Não vá aleijar ele! Tenho muito capital investido aqui... Cara! Que diabos há de errado com você??”, Crumb responde ainda na narrativa, “Você está certo, não é ele quem eu devia assassinar, é você!! Seu maldito!”[5]. Segue um longo discurso do diretor de gravadora tentando convencer Crumb de que ele conhece bem as “músicas boas”.
Com isso Crumb percorre a origem da música até os dias de hoje, mostrando como seu sentido enquanto expressão cultural foi se perdendo a medida que foi se ligando a um novo nicho da indústria. Descreve a época das cavernas:
“Naquela época eles não tinham rádios nem toca-fitas, e precisavam fazer sua própria música. Então eles simplesmente soltavam o gogó ou batucavam em alguma engenhoca caseira...Mas, caramba, mesmo assim eles se divertiam...”[6]

Então ele avança no tempo descrevendo vários momentos históricos e a intencionalidade da produção musical. Até que chega nos dias atuais e diz que “os garotos enfiarão sua magnífica herança cultural no saco de lixo (...)”[7].


Considerações finais: Pra onde foi o blues?
Ao longo da história, em diferentes momentos, houve uma apropriação comercial de determinadas manifestações culturais seja a dança, literatura ou teatro. Ainda sim é possível ver uma força maior de comercialização da música. Aparentemente, é muito mais fácil capitalizar os estilos musicais, seja lá por qual motivo, ou qual força o som se manifesta enquanto identidade, então ha comercialização é desta também.
Atualmente, uma infinidade de estilos mesclados, espalhados pelo mundo e globalizados, são uma mistura, por assim dizer, de tantas tendências, que se perdem ao longo de sua própria história, desligando-se muitas vezes e sem volta, de sua raiz. Mas há que se considerar que a busca pelas origens é inerente ao homem, ele sempre buscará saber sobre o início do que costuma consumir ou gostar, e dessa busca muitos estilos renascem. Como o próprio samba de raiz no Brasil, que ganha novos atores, mas atualmente volta reforçando algumas características de seus originais.
O blues em atualmente está enclausurado em alguns nichos ‘cults’, misturado ao jazz e a outros ritmos que se originaram do primeiro; está perdido entre tantos outros ritmos. Crumb, com sua crítica irônica e mordaz, não polpa esforços ao ridicularizar o que ele mesmo chama de modernidade, e consideraremos o conceito dentro do que ele mesmo define, enquanto registro de um momento de opressão do povo negro e por isso carreado de significação.
Eu e Crumb somos brancos, então por que nos toca tanto?
Sendo este um ritmo que denuncia a exclusão, a condição sofrida de um povo todo, toca, pois sendo ela originada num sentimento, causa este mesmo à quem se põe sensível a ouvir. É então uma transfusão do sentimento de uma época, não é então somente um documento que lido pode ser interpretado, é ainda o que era na época, está vivo e latente, “o blues é o lamento dos oprimidos, o grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada fatalista. É a agonia da indecisão, o desespero dos desempregados, a angústia dos desiludidos e o humor seco do cínico” [8].
Muitas vezes Crumb parece ser um saudosista ranzinza e teimoso, mas ele mesmo se justifica no esquete “Protesto de Crumb contra a música moderna – Onde foi parar toda aquela música dos nossos avós?”, dizendo:
“Então você pergunta: E daí? O que eles deviam fazer, voltar e rezar dentro de cabanas com chão de terra?? O que há de errado com a música pop moderna? Eles estão se divertindo, que diabo diferença isso faz? O que te deixa tão revoltado nisso tudo??? Eu não sei... Acho que fiquei desse jeito por escutar demais discos velhos... Esses ecos do passado Um mundo perdido, pode apostar...A perda daquelas tradições musicais antigas e valiosas... Bem, isso corta a porra do meu coração!”.[9]

E ainda em seu posfácio:
“A música pop moderna sempre me pareceu apocalíptica. Eu ia aos concertos de grupos de rock. A música era ensurdecedora e as pessoas dançavam. Sempre achei que isso parecia o fim do mundo, como se elas dançassem a beira do abismo. Em comparação, a música antiga tem um ar equilibrado, de uma certa maneira. As danças antigas faziam parte de uma vida social que tinha uma continuidade, que mostrava coesão de sociedade. A dança moderna passa a impressão de ser o último passo antes do mergulho no caos absoluto. A página original de ‘Keep on truckin’...foi uma sátira implacável ao otimismo forçado que se sente na música moderna”.[10]

A grande questão evidenciada por Crumb é que hoje a música perde seu sentido de contestação para ser somente elemento de entretenimento, com isso podemos analisar com foco no blues. Este fato é então a evidência do que aconteceu com o blues e continua acontecendo com tantos outros ritmos espalhados pelo mundo. Seu sentido original se perde em suas ramificações e muitos são abandonados ou banalizados até mesmo em estudos acadêmicos.
Existem ainda muitos livros e artigos que exploram o universo do blues, Crumb conseguiu fazer um grande levantamento sem embasamento teórico e auxílio de metodologias, foram anos apreciando e obtendo informações em loco. Ainda sim existe uma porção de produções acadêmicas que convergem quanto ao surgimento e sentido do blues.
Atualmente, ainda temos outras músicas que se ligam ao ritmo de alguma forma, ele não está morto. Sobrevive em letras como Hard Times de Baby Huey and the Babysitters da década de 1970:
“Cold, cold eyes upon me they stare
People all around me and they're all in fear
They don't seem to want me but they won't admit
I must be some kind of creature up here having fits
(...)
Havin' hard times, there's no love to be found”.[11]

Vive ainda na história de Charles Bradley, que morou por anos na rua, tentando ganhar a vida, tendo seu primeira gravação em estúdios em 2003:
“This world is going up in flames
And nobody wanna take the blame
Don't tell me how to live my life
When you never felt the pain
Come on babe
They don't hear me cry”.[12]

E com isso, como breve conclusão, faz se necessária uma maior atenção, ao se contar a história do povo negro estadunidense, e até mesmo a história da própria música, uma maior atenção ao blues, atenção essa clamada também por Robert Crumb e Herzhaft, que na passagem “Qual o blues do futuro?” de seu livro diz:
“Universalmente aceito e reconhecido em toda parte como uma fonte maior de influência da música popular contemporânea, ativando novas vocações no mundo inteiro, o blues deixou de ser verdadeiramente popular entre o povo negro-americano que o criou. (...) blues, que foi sem dúvida o último gênero musical que se pode verdadeiramente qualificar de étnico a aparecer no mundo dos homens. (...) Qualquer que seja seu futuro, o blues jamais voltará a ser o que foi. Podemos imaginar verdadeiramente, por exemplo, que Muddy Waters teria podido tocar outra coisa que não o blues?”.[13]



ANEXO
Quem é Robert Crumb?
Robert Crumb nasceu em 30 de agosto de 1943, na Filadélfia. Seu pai era da Marinha e sua mãe uma mulher muito católica. Em 1956, depois de muitas mudanças, a faia Crumb estabelece residência em Delaware. Os pais de Robert não tinham uma boa relação, sua mãe era viciada em anfetaminas e o pai depressivo, as brigas entre os dois eram recorrentes. O autor relata no documentário produzido sobre sua vida que sua mãe “unhava” o rosto de seu pai, e muitas vezes ele tinha de ir maquiado aos eventos públicos para que não vissem o problema. Crumb e seus quatro irmãos crescem nesse ambiente instável.
Sua maior influência durante juventude foi seu irmão mais velho, Charles Crumb, foi este irmão quem despertou seu interesse pelas histórias em quadrinho. Os dois produziram diversas histórias e juntos, ainda na infância, formaram um clube de quadrinistas. Crumb nunca foi o tipo popular e se sentia sempre deslocado dos grupos com os quais convivia, era um gouche[14], em essência.
Depois de terminar o colegial, Robert passou um ano deprimente Charles, os dois dialogavam muito sobre o sentido da vida, sua produção acompanhava seu estado de espírito. Crumb viria a levantar-se, mas Charles nunca mais sairia de seu quarto, até a data de seu suicídio. Crumb deixa Cleveland em 1962 para viver com seu amigo Marty Pahls, e logo iniciou seu trabalho junto a empresa American Greetings como colorista. Ele foi promovido dentro de um ano para o departamento de Hi-Brow, e com isso começou a atrair a atenção de centenas de fãs. Seu trabalho comercial teria forte impacto em sua futura produção, "Meu chefe sempre me dizia que meus desenhos eram muito grotescos. Fui treinado para desenhar pequenos personagens "bonitos" neutros que influenciaram a minha técnica, e até agora meu trabalho tem essa fofura".
Foi com o contato com a droga LSD que Crumb despertou de um estado de “personagens ‘bonitos’” para a psicodelia no sense produzida pelos efeitos da droga. "Comecei a tomar LSD em Cleveland, em junho de '65. Isso mudou minha cabeça. Isso me fez parar de tomar cartooning tão a sério e me mostrou um lado completamente diferente de mim."
Nesta mesma época Robert viajou por Nova York, Chicago, Detroit e neste período foi seu mais intenso contato com o LSD quando criou muitos de seus personagens como o Mr. Natural, o Sr. Snoid e Angelfood McSpade.
Em janeiro de 1967, o autor deixa Cleveland. "Eu escapei para San Francisco, quando eu conheci dois caras em um bar que disse que eles estavam dirigindo para o oeste”. Em 1967 Crumb desenhou "Zap # 1" e "Zap # 0" e em 1968 os vendeu nas ruas. Este é marco do nascimento de quadrinhos underground com Crumb, sua principal marca. Atualmente Crumb vive no sul da França, onde produziu seu mais longo projeto, a ilustração do livro da Gênesis. Sua coleção de LPs de 78 RPM chega a cinco peças.


[1] CRUMB, Robert. Blues. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 50.
[2] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 32.
[3] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 33.
[5] CRUMB, Robert. Blues. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 62.
[6] Ibidem. Pg. 62.
[7] Ibidem. Pg. 65.
[8] MUGGIATI, Manfred, Blues – da lama a fama. São Paulo, SP: Editora 35, 1995. Pg. 53.
[9] CRUMB, Robert. Blues. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. Pg. 63.
[10] Ibidem
[11] Hard Times, Baby Huey and the Babysitters.  Curtom Records. 1971.
[12] Charles Bradley & Menahan Street Band, The World (Is Going Up In Flames). Daptone Gold, 2003.
[13] HERZHAFT, Gèrard, Blues.Campinas, SP: Papirus, 1989. Pg. 127.
[14] A palavra Francesa gouche em sua tradução literal significa esquerda, porém também designa o estranho, o outro, aquele que não se adequa a padrões sociais.





2 comentários:

  1. Ficou muito bom o trabalho, Mari... tanto o conteúdo quanto o texto. Sugiro que tente divulgá-lo ou publicá-lo também em outros blogs ou publicações impressas sobre jazz e blues... é só dar uma mexidinha leve para não ficar com linguagem 100% acadêmica que vai fazer sucesso em qualquer lugar.
    Abraço!

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  2. Muito obrigada Júlio! Vou correr atrás disso mesmo!

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