Na página 49 segue a esquete
“É a vida”, nesta narrativa Crumb conta um pouco mais sobre sua expedição atrás
dos discos de blues e narra uma das
histórias que ouviu, ou criou para mostrar mais aspectos do blues. Nesta história aparece um homem
negro, Tommy, que mora no campo, ao ter uma briga com sua mulher parte estrada
a fora. Sentado no pé de uma árvore encontra dois conhecidos que estão em um
carro, os dois dizem que estão indo pra uma cidade, na seguinte fala sabemos o
motivo:
“- A gente vai
aparece num disco, Tommy... Sabe o velho Hartley da loja de música de Jackson?
Ele conseguiu pra gente esse trabalho de tocá blues pra uma dessas empresas
grande de disco!!
Tommy: -
Quanto cês vão pagá pra essas pessoa gravá o disco?
- Não, Tommy,
rapaz... As pessoas pagam procê! O velho Hartley falô que o homem dá 25 dólares
pra cada música que cê bota no disco...
(...)
Pode crê que é
bom... E depois, se ocê faz sucesso, eles te chamam de volta e fazem mais uma
panelada de disco, e cê recebe pagamentos maiores... 50 dólares por gravação ou
até mesmo 100!!”.[1]
Com essa história Crumb
exibe o papel das gravadoras e das chamadas race
records, bem como expõe as ilusões destes homens que migravam para o Norte
numa tentativa de ficarem famosos como alguns outros bluesman ficaram. Herzhaft fala em seu livro sobre a criação das
chamadas race records, e da tentativa
de formar um grupo de consumidores desse ritmo que despontava cada vez mais
forte no Sul dos Estados Unidos.
“O diretor de
orquestra negro Perry Bradford, certo de encontrar um importante público local
para discos desse gênero, conseguiu vencer as reticencias (gravar com um
artista negro) do produtor de discos Okeh Fred Hager, e uma cantora local
popular, Mamie Smith, entrava nos estúdios nova-iorquinos, em 1920, pra
gravar”.
Com o sucesso de Mamie
Smith, as gravadoras perceberam a importância do gênero como uma oportunidade
de negócio, dai a criação dessas gravadoras de raça. De 1922 em diante, segundo
Herzhaft, a grande maioria das gravadoras tinham suas race series.
Neste momento o blues se fundiu comercialmente ao jazz, pois as gravadoras mesclavam os
dois ritmos, num outro nicho de comércio musical, para esta fusão, as classic blues singers eram chamadas de
suas atividades já consolidadas nas chamadas turnês de vaudeville, que “eram comédias musicais, espetáculos ambulantes do
começo do século”.
Essas cantoras adquiriram experiência de palco nestes espetáculos, e daí
podemos dizer que começa uma profissionalização do blues.
Essas cantoras viveram sua
infância no meio rural, educadas ouvindo o blues
que ali era feito, mas tendo vivido experiências nos music-hall, tinham um diferencial dos bluesman da época, elas tinham uma dicção clara e usavam efeitos vocais
mais sofisticados, tinha também uma orquestra de apoio, esta que já utilizava
os metais, a maioria delas acabava fazendo carreira também nos teatros e no
cinema mudo.
Segue a esquete “A maldição
vodu de Jelly Roll Morton”, esta narrativa conta a história de um homem da
indústria musical que chegou a bancarrota através de uma magia vodu que
lançaram nele. Essa esquete retoma o folclore que se constitui em torno de
algumas lendas do blues, como por exemplo, Tommy Johnson, que dizia ter vendido
sua alma ao diabo para conseguir alcançar a fama.
Outro ponto importante a se
comparar com Blues, é que na página
18, Crumb conta a história de Tommy e seu pacto com o diabo, mais a frente, na
página 19, conta a historia de Robert Johnson e a nova safra de bluesman. Aqui encontramos mais um ponto
de confiabilidade dos registros de Crumb, em muitas fontes, a história de
Robert Johnson e confundido com Tommy Johnson, em Blues a história é contada
corretamente.
Segue então a última esquete
ligada a história do blues, chama-se “Protesto de Crumb contra a música moderna
– Onde foi parar toda aquela música dos nossos avós?”, nela o autor justifica
seu posicionamento saudosista. Mais uma vez ele descreve o poder da indústria
musical pervertendo o sentido da música ligada a uma cultura de raiz.
No esquete ele espanca um
jovem garoto representante das novas tendências musicais, em meio ao
espancamento um diretor de gravadora diz: “Cuidado com ele (o garoto da banda
nova)! Cuidado! Cuidado! Esta criança vale o peso em ouro! Cristo! Não vá
aleijar ele! Tenho muito capital investido aqui... Cara! Que diabos há de
errado com você??”, Crumb responde ainda na narrativa, “Você está certo, não é
ele quem eu devia assassinar, é você!! Seu maldito!”. Segue um longo discurso
do diretor de gravadora tentando convencer Crumb de que ele conhece bem as
“músicas boas”.
Com isso Crumb percorre a
origem da música até os dias de hoje, mostrando como seu sentido enquanto
expressão cultural foi se perdendo a medida que foi se ligando a um novo nicho
da indústria. Descreve a época das cavernas:
“Naquela época
eles não tinham rádios nem toca-fitas, e precisavam fazer sua própria música.
Então eles simplesmente soltavam o gogó ou batucavam em alguma engenhoca
caseira...Mas, caramba, mesmo assim eles se divertiam...”
Então ele avança no tempo
descrevendo vários momentos históricos e a intencionalidade da produção
musical. Até que chega nos dias atuais e diz que “os garotos enfiarão sua
magnífica herança cultural no saco de lixo (...)”.
Considerações
finais: Pra onde foi o blues?
Ao longo da história, em
diferentes momentos, houve uma apropriação comercial de determinadas
manifestações culturais seja a dança, literatura ou teatro. Ainda sim é
possível ver uma força maior de comercialização da música. Aparentemente, é
muito mais fácil capitalizar os estilos musicais, seja lá por qual motivo, ou
qual força o som se manifesta enquanto identidade, então ha comercialização é
desta também.
Atualmente, uma infinidade
de estilos mesclados, espalhados pelo mundo e globalizados, são uma mistura,
por assim dizer, de tantas tendências, que se perdem ao longo de sua própria
história, desligando-se muitas vezes e sem volta, de sua raiz. Mas há que se
considerar que a busca pelas origens é inerente ao homem, ele sempre buscará
saber sobre o início do que costuma consumir ou gostar, e dessa busca muitos
estilos renascem. Como o próprio samba de raiz no Brasil, que ganha novos
atores, mas atualmente volta reforçando algumas características de seus
originais.
O blues em atualmente está enclausurado em alguns nichos ‘cults’, misturado ao jazz e a outros ritmos que se originaram
do primeiro; está perdido entre tantos outros ritmos. Crumb, com sua crítica
irônica e mordaz, não polpa esforços ao ridicularizar o que ele mesmo chama de
modernidade, e consideraremos o conceito dentro do que ele mesmo define,
enquanto registro de um momento de opressão do povo negro e por isso carreado
de significação.
Eu e Crumb somos brancos,
então por que nos toca tanto?
Sendo este um ritmo que denuncia
a exclusão, a condição sofrida de um povo todo, toca, pois sendo ela originada
num sentimento, causa este mesmo à quem se põe sensível a ouvir. É então uma
transfusão do sentimento de uma época, não é então somente um documento que
lido pode ser interpretado, é ainda o que era na época, está vivo e latente, “o
blues é o lamento dos oprimidos, o
grito de independência, a paixão dos lascivos, a raiva dos frustrados e a gargalhada
fatalista. É a agonia da indecisão, o desespero dos desempregados, a angústia
dos desiludidos e o humor seco do cínico” .
Muitas vezes Crumb parece
ser um saudosista ranzinza e teimoso, mas ele mesmo se justifica no esquete
“Protesto de Crumb contra a música moderna – Onde foi parar toda aquela música
dos nossos avós?”, dizendo:
“Então você
pergunta: E daí? O que eles deviam fazer, voltar e rezar dentro de cabanas com
chão de terra?? O que há de errado com a música pop moderna? Eles estão se
divertindo, que diabo diferença isso faz? O que te deixa tão revoltado nisso
tudo??? Eu não sei... Acho que fiquei desse jeito por escutar demais discos
velhos... Esses ecos do passado Um mundo perdido, pode apostar...A perda
daquelas tradições musicais antigas e valiosas... Bem, isso corta a porra do
meu coração!”.
E ainda em seu posfácio:
“A música pop
moderna sempre me pareceu apocalíptica. Eu ia aos concertos de grupos de rock.
A música era ensurdecedora e as pessoas dançavam. Sempre achei que isso parecia
o fim do mundo, como se elas dançassem a beira do abismo. Em comparação, a
música antiga tem um ar equilibrado, de uma certa maneira. As danças antigas
faziam parte de uma vida social que tinha uma continuidade, que mostrava coesão
de sociedade. A dança moderna passa a impressão de ser o último passo antes do
mergulho no caos absoluto. A página original de ‘Keep on truckin’...foi uma
sátira implacável ao otimismo forçado que se sente na música moderna”.
A grande questão evidenciada
por Crumb é que hoje a música perde seu sentido de contestação para ser somente
elemento de entretenimento, com isso podemos analisar com foco no blues. Este fato é então a evidência do
que aconteceu com o blues e continua acontecendo com tantos outros ritmos
espalhados pelo mundo. Seu sentido original se perde em suas ramificações e
muitos são abandonados ou banalizados até mesmo em estudos acadêmicos.
Existem ainda muitos livros
e artigos que exploram o universo do blues,
Crumb conseguiu fazer um grande levantamento sem embasamento teórico e
auxílio de metodologias, foram anos apreciando e obtendo informações em loco.
Ainda sim existe uma porção de produções acadêmicas que convergem quanto ao
surgimento e sentido do blues.
Atualmente, ainda temos
outras músicas que se ligam ao ritmo de alguma forma, ele não está morto. Sobrevive
em letras como Hard Times de Baby Huey and the Babysitters da década
de 1970:
“Cold,
cold eyes upon me they stare
People
all around me and they're all in fear
They
don't seem to want me but they won't admit
I
must be some kind of creature up here having fits
(...)
Havin'
hard times, there's no love to be found”.
Vive ainda na história de
Charles Bradley, que morou por anos na rua, tentando ganhar a vida, tendo seu primeira gravação em estúdios em 2003:
“This
world is going up in flames
And nobody wanna take the blame
Don't tell me how to live my life
When you never felt the pain
Come
on babe
They don't hear me cry”.
E com isso, como breve
conclusão, faz se necessária uma maior atenção, ao se contar a história do povo
negro estadunidense, e até mesmo a história da própria música, uma maior
atenção ao blues, atenção essa
clamada também por Robert Crumb e Herzhaft, que na passagem “Qual o blues do
futuro?” de seu livro diz:
“Universalmente
aceito e reconhecido em toda parte como uma fonte maior de influência da música
popular contemporânea, ativando novas vocações no mundo inteiro, o blues deixou
de ser verdadeiramente popular entre o povo negro-americano que o criou. (...) blues,
que foi sem dúvida o último gênero musical que se pode verdadeiramente
qualificar de étnico a aparecer no mundo dos homens. (...) Qualquer que seja
seu futuro, o blues jamais voltará a ser o que foi. Podemos imaginar
verdadeiramente, por exemplo, que Muddy Waters teria podido tocar outra coisa
que não o blues?”.
ANEXO
Quem é Robert Crumb?
Robert Crumb nasceu em 30 de
agosto de 1943, na Filadélfia. Seu pai era da Marinha e sua mãe uma mulher
muito católica. Em 1956, depois de muitas mudanças, a faia Crumb estabelece
residência em Delaware. Os pais de Robert não tinham uma boa relação, sua mãe
era viciada em anfetaminas e o pai depressivo, as brigas entre os dois eram
recorrentes. O autor relata no documentário produzido sobre sua vida que sua
mãe “unhava” o rosto de seu pai, e muitas vezes ele tinha de ir maquiado aos
eventos públicos para que não vissem o problema. Crumb e seus quatro irmãos
crescem nesse ambiente instável.
Sua maior influência durante
juventude foi seu irmão mais velho, Charles Crumb, foi este irmão quem
despertou seu interesse pelas histórias em quadrinho. Os dois produziram
diversas histórias e juntos, ainda na infância, formaram um clube de
quadrinistas. Crumb nunca foi o tipo popular e se sentia sempre deslocado dos
grupos com os quais convivia, era um gouche,
em essência.
Depois de terminar o
colegial, Robert passou um ano deprimente Charles, os dois dialogavam muito
sobre o sentido da vida, sua produção acompanhava seu estado de espírito. Crumb
viria a levantar-se, mas Charles nunca mais sairia de seu quarto, até a data de
seu suicídio. Crumb deixa Cleveland em 1962 para viver com seu amigo Marty
Pahls, e logo iniciou seu trabalho junto a empresa American Greetings como colorista. Ele foi promovido dentro de um
ano para o departamento de Hi-Brow, e
com isso começou a atrair a atenção de centenas de fãs. Seu trabalho comercial
teria forte impacto em sua futura produção, "Meu chefe sempre me dizia que
meus desenhos eram muito grotescos. Fui treinado para desenhar pequenos
personagens "bonitos" neutros que influenciaram a minha técnica, e
até agora meu trabalho tem essa fofura".
Foi com o contato com a
droga LSD que Crumb despertou de um estado de “personagens ‘bonitos’” para a
psicodelia no sense produzida pelos
efeitos da droga. "Comecei a tomar LSD em Cleveland, em junho de '65. Isso
mudou minha cabeça. Isso me fez parar de tomar cartooning tão a sério e me
mostrou um lado completamente diferente de mim."
Nesta mesma época Robert
viajou por Nova York, Chicago, Detroit e neste período foi seu mais intenso
contato com o LSD quando criou muitos de seus personagens como o Mr. Natural, o
Sr. Snoid e Angelfood McSpade.
Em janeiro de 1967, o autor deixa
Cleveland. "Eu escapei para San Francisco, quando eu conheci dois caras em
um bar que disse que eles estavam dirigindo para o oeste”. Em 1967 Crumb
desenhou "Zap # 1" e "Zap # 0" e em 1968 os vendeu nas ruas.
Este é marco do nascimento de quadrinhos underground com Crumb, sua principal
marca. Atualmente Crumb vive no sul da França, onde produziu seu mais longo
projeto, a ilustração do livro da Gênesis. Sua coleção de LPs de 78 RPM chega a
cinco peças.